domingo, 3 de outubro de 2010

LITERATURA

Esta é a primeira postagem
dentro da página LITERATURA de nosso Blog.
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UM DIA QUALQUER DEPOIS DE ONTEM.
Luís Lago
 Algumas curvas que este rio chamado Caiuazinho fazia, ainda consigo notá-las.   Mas não sei se devido a meus olhos gastos pelo tempo gasto, parecem-me levemente mudadas.  Já outros pedaços do rio, a vista não me ilude, desapareceram e me enchem de uma saudade amarga.  Aqui mesmo, onde eu e ela sentávamos com as pernas dentro d’água para que os peixinhos sonolentos viessem mordiscá-las, nada restou da touceira de bambus que guardava nossos segredos.  O que vejo, agora, é uma ribanceira de capins-gordura secos de sol e abandonados pelas raízes.
     Sigo meu caminho pela margem,  com uma tristeza de não ter jeito, e paro aonde outrora havia um remanso.  Nele nadávamos nús, as roupas largadas sobre as pedra e, não sei se de propósito ou ao acaso, estavam sempre misturadas, como se fossem uma só.  Nadávamos e esbarrávamos os corpos magricelos, e nos lavávamos um ao outro, a maldade distante como as montanhas que cercavam nossa cidade.
     Depois deixávamos este rio e, sorriso aberto sob o brilho do dia, iniciávamos um sobe-e-desce pelas ladeiras das ruas. 
  Era um perambular alucinado, sem outro fim a não ser estarmos juntos, mãos unidas, corpos colados e corações saltando aos pedaços.

     Já tardinha feita, boquinha da noite, íamos fingir rezar na  Matriz da praça central.
  E fingíamos tão bem que o padre cria piamente, como cria em Deus-Todo-Poderoso, que a nossa presença diária fosse uma devoção cega ou promessas bem firmadas.  Mas no fundo mesmo, com os nossos olhos cerrados, estávamos revivendo todas as horas, todos os minutos, todos os segundos do nosso apaixonado viver.
     Naquele tempo, cortando a cidade, havia uma estrada de ferro que vinha não sabíamos de onde mas ía para quase pertinho de Santos, pelo que diziam todos.  Eu e ela nos divertíamos vendo o trem passar  com seus vagões desengonçados, e vendo a fumaça da locomotiva desenhar nos céus coisas sem nexo algum.
Certa feita, quando o trem já desaparecia na curva, ela gritou:
     — Sou a princesa deste Reino!  Lá se vai minha carruagem!
     — E eu sou su criado, Alteza –retruquei, bonachão.
     — Idiota… –ela me disse, muito séria –princesas não têm criados;  elas têm princípes encantados… E é isso que você é!
     Recordo-me que a minha meiga princesa não tinha manto real mas sim um simples e largo vestido de chita, surrado pelo tempo de uso e sempre encardido pelos nossos folguedos.  Lembro-me bem que quando os ventos endiabrados de nossa cidadela nos açoitavam, seu vestido erguia-se e deixava à mostra pedaços marotos de suas pernas finas, fazendo meus olhos se encherem de graça e meu coração pequeno arder em fogo intenso.  Mas me lembro, também, que certa feita ela partiu em sua carruagem de ferro para nunca mais.  Acreditei na época, e com muita dor, estivesse ela brincando por entre as núvens que se misturavam à fumaça de sua locomotiva e aos recantos de nosso riacho.

     Mas isso tudo foi ontem.  Um ontem que de tão distante fez-se velho e, com ele, envelhecer nossa cidade, nossos encantos, nossas ternuras e nossas vidas.