quinta-feira, 7 de outubro de 2010

 UM CASO DE AMOR
  Luís Lago



                                                           
            
       A professora sempre que interrompia seus apontamentos e olhava para o fundo da classe, estranhava o ar tão triste daquele seu aluno.  Ele lá permanecera, após a saída dos demais. Passavam alguns minutos do meio-dia e lá fora o sol ardia no pátio vazio de encantos e de árvores.
            A claridade era intensa.  Mas não adiantava nada que o céu estivesse azul e sem nuvem nenhuma porque a alma de Tavito estava negra.  Era o que concebia Dona Anna ao ver seu aluno, antes tão dedicado, os olhos fixos no chão e uma expressão de dor saindo-lhe das faces.  Começou a sentir uma pena enorme.  Mais ainda quando lembrou-se  da conversa que teve com a mãe dele e com o doutor Lecuona.
            Primeiro veio a mãe.  Aflita.
            -- Dona Anna, a senhora considere o estado do meu filho.  Considere e releve.  Ele anda adoentado.  Deu pra não dormir direito.  Vira de um lado, vira do outro.  Quando consegue fechar os olhos, acorda aos grios.  Corro pra ver e lá está ele suado e tremendo.  –Pesadelo de novo, meu filho? –pergunto.  Em vão.  Não responde.  Só me olha com aqueles olhos esbugalhados.  Levei-o ao médico.  Ele o examinou de cabo a rabo.  Não encontrou nada, Dona Anna.  Também nada receitou.  A única coisa  que disse foi que aquilo era coisa comum nos jovens.  Converse com meu fllho, professora.  Quem sabe ele não diz o que está sentindo...
            Mal havia saído a mãe, chegou o doutor Lecuona.  Ele era, além de dentista renomado, o técnico de futebol de Tavito no time de futebol local: Perla Porteña Sport Club.  Entrou esbaforido na sala reservada aos professores e sentou-se em frente à Dona Anna.  Não disse “bom-dia”, sequer um “olá”. Suava aos cântaros.  O lenço já encharcado, não era suficiente para a torrente que lhe saía dos poros da testa e das faces vermelhas.  Levantou-se da cadeira e se pôs a andar.  Depois parou.  Andava, parava.  Andava de novo, parava.  Esfregava as mãos, as punha nos bolsos, retirava-as e esfregava novamente.  Pigarreou e começou uma frase.  Não concluiu.  Começou outra.  Também não concluiu.
            --Doutor Lecuona, acalme-se.  Aceite um copo de água  –arriscou a professora.  Aceitou. Bebeu de um gole só.
            --Obrigado. Estou melhor.
            Não estava.  Tremia.  Devolveu o copo.  Então, em um esforço sobre-humano, disse:  –Professora, vamos ser rápidos.  Curtos e grossos, como se diz.  A senhora sabe o que é ser técnico de um time e carregar esse time no coração? Não Sabe!   Sabe o que é ser derrotado três domingos seguidos?  Três!  Eu disse, três!  Sabe?  Não sabe! A senhora sabe que essas derrotas se devem à ausência do seu aluno, Tavito?  Sabe?  Não sabe, mas devia saber.
            Dona Anna estava atônita.  O técnico-dentista doutor Lecuona, quase a desmaiar sem fôlego, continuou:  –Sabe que esta besta do seu aluno está com a pior das doenças?  Sabe?  Sabe o nome dessa maldita doença?  Não sabe!  Pois eu lhe digo:  chama-se Professora Anna!  Pronto!  É o que tinha a dizer!
            O impacto que sentiu a professora a fez desmoronar-se  na cadeira.  –Eu?!... O senhor enloqueceu?
            --Não enloqueci, não senhora.  Mas irei, se a senhora não resolver a demência em que está metido seu aluno e meu atleta.
            O técnico-dentista doutor Lecuona afastou-se até  a porta de saída.  Antes de fechá-la, disse categoricamente:  –Está tão somente na senhora, professora, a solução do problema do Tavito e, claro, de si própria.
            Agora, ali sentada à sua mesa, olhando para a tristeza de seu aluno, ela começou a pensar na tristeza que também carregava com a solidão.  Ninguém para lhe acompanhar as horas silenciosas.  Ninguém que elhe acolhesse a ternura, tão imensa.  Ninguém que ouvisse os muitos ais espalhados pelo longo caminha de sua vida.  Enão, fechou o livro de apontamentos.  Levantou-se.  Foi andando devargazinho até o seu aluno triste.  Parou.  Aspirou quase  todo o ar da sala, e disse num repente –Tavito, esteja na minha casa às 8 da noite!  Isso é uma ordem, Tavito.
            Em sua casa, a professora Anna acabava, agora, de adoçar a jarra do suco de laranja.  Vestia um shortinho desfiado nas barras e uma blusinha transparente amarrada com um nó na cintura.  Saiu da cozinha.  Deparou-se com Tavito parado no meio da sala.  Ele tinha os olhos presos nas tábuas do assoalho.  Depois no teto.  Novamente nas tábuas do assoalho.  A professora sentou-se no sofá, cruzou as pernas e acendeu um cigarro.  O ruído do isqueiro, talvez, ou talvez o aroma do perfume que vinha do sofá, fez Tavito sair do estupor.  Aproximou-se do sofá e de sua professora.  Ela abriu os braços e agasalhou neles toda a ansiedade e todos os desejos do mundo.
            O amor ali foi tanto entre os dois que invadiu toda a casa; e transbordou pelas frestas da porta e das janelas; e fez das ruas e das praças um rio caudaloso e louco.  A noite tardou em fenecer.  O dia tardou a despontar.  E um silêncio imenso foi-se penetrando em tudo, lentamente.
            No domingo, contra o time visitante, Tavito marcou cinco dos seis gols na vitória do glorioso Perla Porteña Sport Club.  Na arquibancada, os gritos de alegria do técnico doutor Lecuona eram apagados pelos da professora Anna.  Gritos que chegavam aos ouvidos de Tavito como acordes de uma sinfonia inacabada.